MEMÓRIAS INACABADAS
1. FORÇA PÚBLICA, EU TE
AMO!
Porque te amo? À
resposta, é preciso uma explicação. É necessário voltar os ponteiros do relógio
do tempo, ao longínquo 10 de maio de 1935. Nesse dia, por não haver sido
chamado a São Paulo onde fiz alistamento, fui ao Instituto Correcional de
Taubaté, cidade onde residia e ainda resido, saber na Secretaria se havia
alguma notícia sobre o alistamento. E havia: que eu fora alistado no dia 30 de
abril de 1935, Bol. Geral nº 96, da mesma data. No mesmo dia tomei uma carona
de caminhão e cheguei a São Paulo as 16:00 horas. Expediente encerrado. Sem
dinheiro, com os tênis furados nos dedos, um capote velho e roto, só tive
uma alternativa, dormir na mesa de concreto do Jardim da Luz. Meu travesseiro
foi um tijolo forrado com o boné, que a Providência Divina me ofertou. Ali
passei até o amanhecer do dia 11 de maio de 1935.
Os portões do C.I.M.
(Centro de Instrução Militar) estavam abertos e com o vai-e-vem dos soldados
também fui. O serviço de alistamento ficava nos fundos, à direita, junto aos
muros da Casa de Detenção. O encarregado da seleção era o Aspirante Alfredo
Guedes de Souza Figueira. Aguardei a chamada do meu nome, naquela turma de
moços, que, como eu, esperava a oportunidade do emprego modesto que nos tirasse
da miséria. Depois de várias chamadas ouvi meu nome: Alistado Garcílio da Costa
Ferreira! Com a mão no alto me apresentei. Fui levado à presença do Aspirante
Guedes, que foi taxativo: Você deveria se apresentar no dia 08 de maio e não
11, portanto, seu alistamento está cancelado. Recebi aquele veredictun,
completamente aterrado, com os olhos parados nos olhos daquele homem, que
iniciando sua vida como Aspirante a Oficial, não tinha um mínimo de
sensibilidade para com aquele moço mal trajado, sem dinheiro ou meios de voltar
para Taubaté, onde deixou a pobre velha tia e o irmão desempregado, com três
meses de aluguel atrasado. Tomando coragem fiz ver àquele homem a dramática
situação em que me encontrava. Não consegui demovê-lo, que, virando-se para o
soldado encarregado, determinou: leve esse elemento até o portão da guarda e
avise que não o deixe entrar novamente. Acompanhado do soldado fui posto fora
do Quartel por ordem daquele homem prepotente e ciente de seu poder de decisão.
Na Rua Jorge Miranda,
encostei-me na parede para não cair. Ameaçado de forte tontura, pois nem café
havia tomado, refeito, respirando fundo o aroma do Jardim da Luz, dirigi-me em
passos cambaleantes até a esquina da Avenida Tiradentes, que contornei. Ali na
esquina deparei com uma placa de metal, limpa com Kaol e que se lia
"Comando do C.I.M". Completamente aparvalhado subi as escadas e
atingi uma área em que havia um banco de madeira, onde sentei, aguardando a
chegada de alguém, que logo chegou. Vendo aquele moço de aspecto andrajoso,
perguntou o que eu queria, o que respondi, falar como comandante, eu sou de
Taubaté e fui apresentado pelo prefeito para verificar praça na Força Pública.
Ele me mandou aguardar e desapareceu atrás de uma porta. Minutos depois eu
estava na presença do Major Oscar de Melo Gaia. Perguntado o que desejava,
respondi que estava me alistando na Força Pública e perdi o prazo de
apresentação por não ler jornais ou ser avisado. Cheguei com onze dias de
atraso sendo posto fora do Quartel pelo Aspirante Guedes, encarregado do
alistamento.
Fiz ver-lhe que era
apresentado pelo Prefeito de Taubaté, José Miliet Filho o que ele disse ser seu
amigo. Fiz ver-lhe a situação em que me encontrava, sem meios de retornar a
Taubaté e a cada fase ele respondia com o seu tique nervoso, o prefeito é meu
amigo, eu fui comandante do 5º B.C. Depois de conversar sobre Taubaté, disse ao
ordenança, chame o Aspirante Guedes. Este logo veio e se perfilou ante o chefe,
às suas ordens comandante: "Pode resenhar o civil Garcílio, é um caso
especial de Taubaté". O Aspirante Guedes lançou um olhar fulminante sobre
aquele trapo humano que se encontrava ali e determinou, vamos! No caminho até a
Secção de Alistamento me disse: "Você entrou na Força Pública pela porta
da bajulação, vai dar um mau soldado". Este foi o primeiro episódio que
marcou a minha vida na Força Pública de São Paulo. É por isso que eu te amo
Força Pública de São Paulo. Força Pública de Cel. Milton de Freitas Almeida, de
Cel. José Lopes da Silva, de Cel. Benedito Elpídio Hidalgo, de Cel. João de
Quadros. de Cel. Ernani de Tolosa, de Cel. José Inojosa e tantos outros que só
fizeram a grandeza moral de São Paulo.
E neste rodapé, não
poderia deixar de agradecer ao então Major Oscar de Melo Gaia, a situação em
que vivo hoje relativamente cômoda pelo simples gesto de me acolher na Força
Pública. E, muitos anos depois, já no 5º B.C. de Taubaté, como Cabo da Guarda,
recebi a ordem de veladamente e com especial sigilo, observar os movimentos de
um certo Coronel que "gozava" férias no Estado Maior do Batalhão. E
no dia do teu aniversário, eu repito: Força Pública, eu te amo!
Taubaté, 15 de dezembro
de 1996
Garcílio da Costa
Ferreira - 2º Sgtº RE 5.106-2
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2. CARTA A UM AMIGO.
Prezado Cel. Lopes
Meus respeitos
O telefonema não foi
suficiente para externar o meu apreço e os desejos de um feliz aniversário.
Quis o destino, Senhor Onipotente, que aquele moço, vindo da região de Queluz,
se tornasse soldado da nossa querida Força Pública, e que, pelos caminhos da
vida militar, distribuísse a todos, favores e ajuda aos que dele se acercavam.
Disse um personagem referindo-se a Newton: "É uma honra para o gênero
humano, que tal homem tenha existido". Faço minhas, as suas palavras e
atribuo ao prezado chefe e amigo a frase sobre Newton.
Austregésilo de Athayde,
Presidente da Academia Brasileira de Letras, recentemente falecido, dormia em
seu bercinho em 31 de dezembro de 1899, e sua mãe o chamou - acorda
Austregésilo, o século vinte está chegando! Na chegada do século vinte e um, eu
não estarei aqui para chamá-lo, mas, um de seus filhos queridos chegará a sua
cama e lhe dirá - acorda papai, o século vinte e um está chegando!
Taubaté, 19 de abril de
1994
Garcílio da Costa
Ferreira - 2º Sgtº RE 5106-2
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3. A PERGUNTA QUE TODOS QUERIAM FAZER.
São Paulo, 02 de agosto
de 1966
Hebe, esta carta é
dirigida a você. Tem, entretanto, um destino certo – Fêgo de Camargo. Ela é
longa Hebe, é saudosa, diferente de todas as que você tem recebido no decorrer
de sua carreira artística. É uma homenagem que faço ao violonista do Cine
Polytheama de Taubaté. Quem lhe escreve é um admirador e você me perdoará o
tratamento íntimo, pois, você na vida artística para milhares de fãs é assim –
Hebe. Quando lhe vejo na TV, digo aos meus companheiros com indisfarçável
orgulho: “esta é uma taubateana prata da casa”. Mas, no íntimo Hebe, tenho uma
dúvida atroz, que você não seja uma taubateana. Para minha alegria ou tristeza
você me dirá se é ou não é. Mas, vamos ao destinatário certo. Eu sou do tempo
do cinema mudo em Taubaté, e nosso Fêgo entrava pela porta principal do cinema
e percorria o corredor até ao piano com o violino debaixo do braço. Ao piano,
já se encontrava Cerina, esperando-o. O homem do rabecão, magrinho e baixinho,
não me deixou na memória, hoje cansada, o seu nome.
Havia, se não me engano,
outro elemento na orquestra, mas também não me lembro o seu nome. Tudo já vai
tão longe, meus cabelos já estão branqueando, mas a memória ainda teima em
reter fatos que fazem às vezes, sermos felizes em relembrá-los. Quando Fêgo
entrava era um Deus nos acuda. Valia mais a entrada do violonista do que do
espetáculo, pois, ele servia com sua presença, para aguçar nossa alegria, pela
próxima chegada de Tom Mix, Greta Garbo ou Glória Swanson. Logo após a chegada
de Fêgo, a um olhar dele aos outros músicos começava a introdução, só então
parava a nossa alegria infernal e o bater dos pés. Fêgo, executada a seguinte
música, colhia as palmas de crianças inocentes e de adultos. Parava um pouco
para descanso, a expectativa era intensa, os nossos olhos estavam firmes nos
músicos e na tela, e a simples sombra do dedo do operador que refletisse na
alva tela era para nós, moleques de rua, motivo de transbordante alegria. O
baleiro corria os corredores apregoando sua mercadoria “baleiro...baleiro,
côco, chocolate e ortelã”. Na rua, à beira da calçada, gritavam “pinhão cozido,
60 por um tostão” ou “amendoim torradinho, quentinho”. Era tudo tão bonito,
Hebe, que você não faz ideia. Parecia que o mundo era melhor. A um sinal do
maestro Fêgo de Camargo, entrava a segunda parte da orquestra, e, ao terminar a
segunda parte. nova gritaria e assovios. Era a satisfação máxima daquele
aglomerado de crianças pobres.
Começava o espetáculo
sob o acompanhamento da orquestra, uma música leve ou forte, de acordo com a
cena do filme apresentado. Nas gerais, “no galinheiro” como nos chamávamos, era
uma gritaria dos infernos, enquanto o revólver do Tom Mix despejava balas, sem
precisar carregar a arma – agora é que a gente sabe que revólver só tem seis
balas – só o facão do soldado impunha respeito, ele não precisava falar, dar
ordens, a presença da farda e do sabre na cinta, era o suficiente. O espetáculo
decorria e nos nossos corações infantis pedíamos a Deus – naquele tempo era
tudo tão diferente, Hebe – que a sessão não terminasse nunca. Mas terminava.
Íamos cada um para sua casa, não sem antes admirar, com água na boca as
vitrines de doces da Padaria e Confeitaria Suíça Vitória e muitas vezes nenhum
cafezinho, porém, exultantes de satisfação íamos pelas ruas comentando a
atuação do “mocinho” e a pouca sorte do “bandido”. Naqueles tempos os filmes
educativos, o “bandido” pagava pelo seu crime antes de qualquer vitória
concreta. Hoje não, ele só morre ou vai para a cadeia depois que deixa na mente
de cada adolescente, este raciocínio: “Ele morreu, mas, aproveitou antes e
gozou a vida”.
Mas, deixa prá lá e vamos falar de Fêgo de Camargo. Terminada a sessão vinha
com colegas de orquestra para o bate-papo e o cafezinho no “Café Guarany”, de
Heitor Sene ou no “Convênio”. Você Hebe, poderá não gostar desta carta - “O que
tenho eu com essas antiguidades?” – mas, você já pensou o quanto é querida do
público, “Rainha dos Cavalarianos do Regimento Nove de Julho da Força Pública”.
Essa simpatia e essa simplicidade que contagiam multidões sabem o que é isso.
Houve um programa seu no Dia das Mães que eu chorei quando você recebeu o
abraço de gratidão de dona ... Que pena! Não sei o nome dela, mas é esposa de
Fêgo e a mãe de Hebe, e basta! Foi uma apoteose aquela festa, como gostei! Eu
sempre gosto de festa onde haja ternura e amor. Eu queria que o mundo fosse
melhor do que é, que houvesse mais justiça, mais amor, mais igualdade, que os
ricos fossem menos poderosos e os pobres menos miseráveis. Já tomei muito seu
tempo. Receba, portanto, Hebe, essa carta que é uma homenagem saudosa de um
admirador dessa querida família taubateana e quando nos seus programas, lembra
de Taubaté, refira-se a nossa terra e a nossa gente. Diga também Hebe, palavras
aos internados do "Presídio Militar Romão Gomes" da Força Pública,
fãs incondicionais de seus programas. À Fêgo Camargo e Senhora, a você e esposo
e ao garoto, um abração taubateano.
TAUBATEANA COM MUITO
ORGULHO
Garcílio da Costa
Ferreira
3º Sargento RE
5106-2
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4. A TÃO
AGUARDADA RESPOSTA DE HEBE CAMARGO
São Paulo, 21 de agosto
de 1966
Meu caro senhor
Garcílio.
Profundamente emocionada
respondo a sua cartinha que me sensibilizou de verdade. Eu nem encontro
palavras para dizer, depois de tantas coisas bonitas que o senhor me escreveu.
Para que fique contente, digo-lhe que sou taubateana, com muito orgulho. Sou da
terra do meu pai, de que o senhor tanto fala nesta carta. Ele por certo se
lembrará do senhor, quando ler esta. O senhor me proporcionou um enorme prazer
e muita alegria, lembrando essas coisas tão interessantes do tempo de sua
infância e do meu pai. Ele vem todos os dias em minha casa e juntos vamos ler a
sua carta.
Gostei imensamente de
ter recebido uma cartinha tão carinhosa, de uma pessoa que foi companheiro de
meu pai na juventude e que agora acompanha pela televisão os meus programas,
com o mesmo carinho e admiração. Deus lhe pague e lhe dê muita saúde. Queira
por favor, transmitir aos seus companheiros o meu abraço e os votos de
felicidade.
Cordialmente,
Hebe
Camargo.
PROFº GILBERTO DA COSTA
FERREIRA - HISTORIADOR, PESQUISADOR E ESCRITOR. COORDENADOR TÉCNICO DO MEMORIAL
GENERAL JÚLIO MARCONDES SALGADO.
cfgilberto@yahoo.com.br
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Sgtº. Garcílio, o Sr. foi demais ! | 20/10/2013
ResponderExcluirDesses acontecimentos, não tive conhecimento. Me encantei com os fatos. Lembro-me de que por vezes, tio Garcílio dizia que para ele não tinha barreiras, falaria com quem quer que fosse, autoridade ou não. Disse certa vez que só não falaria com DEUS, porque para isso, só se morresse ! E aí não daria certo.
Nestor da Costa Ferreira.