sábado, 19 de outubro de 2013

GARCÍLIO DA COSTA FERREIRA - (42)












MEMÓRIAS INACABADAS






1. FORÇA PÚBLICA, EU TE AMO!



Porque te amo? À resposta, é preciso uma explicação. É necessário voltar os ponteiros do relógio do tempo, ao longínquo 10 de maio de 1935. Nesse dia, por não haver sido chamado a São Paulo onde fiz alistamento, fui ao Instituto Correcional de Taubaté, cidade onde residia e ainda resido, saber na Secretaria se havia alguma notícia sobre o alistamento. E havia: que eu fora alistado no dia 30 de abril de 1935, Bol. Geral nº 96, da mesma data. No mesmo dia tomei uma carona de caminhão e cheguei a São Paulo as 16:00 horas. Expediente encerrado. Sem dinheiro, com os tênis furados  nos dedos, um capote velho e roto, só tive uma alternativa, dormir na mesa de concreto do Jardim da Luz. Meu travesseiro foi um tijolo forrado com o boné, que a Providência Divina me ofertou. Ali passei até o amanhecer do dia 11 de maio de 1935.

Os portões do C.I.M. (Centro de Instrução Militar) estavam abertos e com o vai-e-vem dos soldados também fui. O serviço de alistamento ficava nos fundos, à direita, junto aos muros da Casa de Detenção. O encarregado da seleção era o Aspirante Alfredo Guedes de Souza Figueira. Aguardei a chamada do meu nome, naquela turma de moços, que, como eu, esperava a oportunidade do emprego modesto que nos tirasse da miséria. Depois de várias chamadas ouvi meu nome: Alistado Garcílio da Costa Ferreira! Com a mão no alto me apresentei. Fui levado à presença do Aspirante Guedes, que foi taxativo: Você deveria se apresentar no dia 08 de maio e não 11, portanto, seu alistamento está cancelado. Recebi aquele veredictun, completamente aterrado, com os olhos parados nos olhos daquele homem, que iniciando sua vida como Aspirante a Oficial, não tinha um mínimo de sensibilidade para com aquele moço mal trajado, sem dinheiro ou meios de voltar para Taubaté, onde deixou a pobre velha tia e o irmão desempregado, com três meses de aluguel atrasado. Tomando coragem fiz ver àquele homem a dramática situação em que me encontrava. Não consegui demovê-lo, que, virando-se para o soldado encarregado, determinou: leve esse elemento até o portão da guarda e avise que não o deixe entrar novamente. Acompanhado do soldado fui posto fora do Quartel por ordem daquele homem prepotente e ciente de seu poder de decisão.

Na Rua Jorge Miranda, encostei-me na parede para não cair. Ameaçado de forte tontura, pois nem café havia tomado, refeito, respirando fundo o aroma do Jardim da Luz, dirigi-me em passos cambaleantes até a esquina da Avenida Tiradentes, que contornei. Ali na esquina deparei com uma placa de metal, limpa com Kaol e que se lia "Comando do C.I.M". Completamente aparvalhado subi as escadas e atingi uma área em que havia um banco de madeira, onde sentei, aguardando a chegada de alguém, que logo chegou. Vendo aquele moço de aspecto andrajoso, perguntou o que eu queria, o que respondi, falar como comandante, eu sou de Taubaté e fui apresentado pelo prefeito para verificar praça na Força Pública. Ele me mandou aguardar e desapareceu atrás de uma porta. Minutos depois eu estava na presença do Major Oscar de Melo Gaia. Perguntado o que desejava, respondi que estava me alistando na Força Pública e perdi o prazo de apresentação por não ler jornais ou ser avisado. Cheguei com onze dias de atraso sendo posto fora do Quartel pelo Aspirante Guedes, encarregado do alistamento. 

Fiz ver-lhe que era apresentado pelo Prefeito de Taubaté, José Miliet Filho o que ele disse ser seu amigo. Fiz ver-lhe a situação em que me encontrava, sem meios de retornar a Taubaté e a cada fase ele respondia com o seu tique nervoso, o prefeito é meu amigo, eu fui comandante do 5º B.C. Depois de conversar sobre Taubaté, disse ao ordenança, chame o Aspirante Guedes. Este logo veio e se perfilou ante o chefe, às suas ordens comandante: "Pode resenhar o civil Garcílio, é um caso especial de Taubaté". O Aspirante Guedes lançou um olhar fulminante sobre aquele trapo humano que se encontrava ali e determinou, vamos! No caminho até a Secção de Alistamento me disse: "Você entrou na Força Pública pela porta da bajulação, vai dar um mau soldado". Este foi o primeiro episódio que marcou a minha vida na Força Pública de São Paulo. É por isso que eu te amo Força Pública de São Paulo. Força Pública de Cel. Milton de Freitas Almeida, de Cel. José Lopes da Silva, de Cel. Benedito Elpídio Hidalgo, de Cel. João de Quadros. de Cel. Ernani de Tolosa, de Cel. José Inojosa e tantos outros que só fizeram a grandeza moral de São Paulo. 

E neste rodapé, não poderia deixar de agradecer ao então Major Oscar de Melo Gaia, a situação em que vivo hoje relativamente cômoda pelo simples gesto de me acolher na Força Pública. E, muitos anos depois, já no 5º B.C. de Taubaté, como Cabo da Guarda, recebi a ordem de veladamente e com especial sigilo, observar os movimentos de um certo Coronel que "gozava" férias no Estado Maior do Batalhão. E no dia do teu aniversário, eu repito: Força Pública, eu te amo!

Taubaté, 15 de dezembro de 1996
Garcílio da Costa Ferreira  -  2º Sgtº RE 5.106-2


*******




2. CARTA A UM AMIGO.
Prezado Cel. Lopes
 Meus respeitos


O telefonema não foi suficiente para externar o meu apreço e os desejos de um feliz aniversário. Quis o destino, Senhor Onipotente, que aquele moço, vindo da região de Queluz, se tornasse soldado da nossa querida Força Pública, e que, pelos caminhos da vida militar, distribuísse a todos, favores e ajuda aos que dele se acercavam. Disse um personagem referindo-se a Newton: "É uma honra para o gênero humano, que tal homem tenha existido". Faço minhas, as suas palavras e atribuo ao prezado chefe e amigo a frase sobre Newton. 

Austregésilo de Athayde, Presidente da Academia Brasileira de Letras, recentemente falecido, dormia em seu bercinho em 31 de dezembro de 1899, e sua mãe o chamou - acorda Austregésilo, o século vinte está chegando! Na chegada do século vinte e um, eu não estarei aqui para chamá-lo, mas, um de seus filhos queridos chegará a sua cama e lhe dirá - acorda papai, o século vinte e um está chegando!

Taubaté, 19 de abril de 1994
Garcílio da Costa Ferreira  -  2º Sgtº RE 5106-2



*******



  3. A PERGUNTA QUE TODOS QUERIAM FAZER.

São Paulo, 02 de agosto de 1966

Hebe, esta carta é dirigida a você. Tem, entretanto, um destino certo – Fêgo de Camargo. Ela é longa Hebe, é saudosa, diferente de todas as que você tem recebido no decorrer de sua carreira artística. É uma homenagem que faço ao violonista do Cine Polytheama de Taubaté. Quem lhe escreve é um admirador e você me perdoará o tratamento íntimo, pois, você na vida artística para milhares de fãs é assim – Hebe. Quando lhe vejo na TV, digo aos meus companheiros com indisfarçável orgulho: “esta é uma taubateana prata da casa”. Mas, no íntimo Hebe, tenho uma dúvida atroz, que você não seja uma taubateana. Para minha alegria ou tristeza você me dirá se é ou não é. Mas, vamos ao destinatário certo. Eu sou do tempo do cinema mudo em Taubaté, e nosso Fêgo entrava pela porta principal do cinema e percorria o corredor até ao piano com o violino debaixo do braço. Ao piano, já se encontrava Cerina, esperando-o. O homem do rabecão, magrinho e baixinho, não me deixou na memória, hoje cansada, o seu nome.

Havia, se não me engano, outro elemento na orquestra, mas também não me lembro o seu nome. Tudo já vai tão longe, meus cabelos já estão branqueando, mas a memória ainda teima em reter fatos que fazem às vezes, sermos felizes em relembrá-los. Quando Fêgo entrava era um Deus nos acuda. Valia mais a entrada do violonista do que do espetáculo, pois, ele servia com sua presença, para aguçar nossa alegria, pela próxima chegada de Tom Mix, Greta Garbo ou Glória Swanson. Logo após a chegada de Fêgo, a um olhar dele aos outros músicos começava a introdução, só então parava a nossa alegria infernal e o bater dos pés. Fêgo, executada a seguinte música, colhia as palmas de crianças inocentes e de adultos. Parava um pouco para descanso, a expectativa era intensa, os nossos olhos estavam firmes nos músicos e na tela, e a simples sombra do dedo do operador que refletisse na alva tela era para nós, moleques de rua, motivo de transbordante alegria. O baleiro corria os corredores apregoando sua mercadoria “baleiro...baleiro, côco, chocolate e ortelã”. Na rua, à beira da calçada, gritavam “pinhão cozido, 60 por um tostão” ou “amendoim torradinho, quentinho”. Era tudo tão bonito, Hebe, que você não faz ideia. Parecia que o mundo era melhor. A um sinal do maestro Fêgo de Camargo, entrava a segunda parte da orquestra, e, ao terminar a segunda parte. nova gritaria e assovios. Era a satisfação máxima daquele aglomerado de crianças pobres. 

Começava o espetáculo sob o acompanhamento da orquestra, uma música leve ou forte, de acordo com a cena do filme apresentado. Nas gerais, “no galinheiro” como nos chamávamos, era uma gritaria dos infernos, enquanto o revólver do Tom Mix despejava balas, sem precisar carregar a arma – agora é que a gente sabe que revólver só tem seis balas – só o facão do soldado impunha respeito, ele não precisava falar, dar ordens, a presença da farda e do sabre na cinta, era o suficiente. O espetáculo decorria e nos nossos corações infantis pedíamos a Deus – naquele tempo era tudo tão diferente, Hebe – que a sessão não terminasse nunca. Mas terminava. Íamos cada um para sua casa, não sem antes admirar, com água na boca as vitrines de doces da Padaria e Confeitaria Suíça Vitória e muitas vezes nenhum cafezinho, porém, exultantes de satisfação íamos pelas ruas comentando a atuação do “mocinho” e a pouca sorte do “bandido”. Naqueles tempos os filmes educativos, o “bandido” pagava pelo seu crime antes de qualquer vitória concreta. Hoje não, ele só morre ou vai para a cadeia depois que deixa na mente de cada adolescente, este raciocínio: “Ele morreu, mas, aproveitou antes e gozou a vida”.

Mas, deixa prá lá e vamos falar de Fêgo de Camargo. Terminada a sessão vinha com colegas de orquestra para o bate-papo e o cafezinho no “Café Guarany”, de Heitor Sene ou no “Convênio”. Você Hebe, poderá não gostar desta carta - “O que tenho eu com essas antiguidades?” – mas, você já pensou o quanto é querida do público, “Rainha dos Cavalarianos do Regimento Nove de Julho da Força Pública”. Essa simpatia e essa simplicidade que contagiam multidões sabem o que é isso. Houve um programa seu no Dia das Mães que eu chorei quando você recebeu o abraço de gratidão de dona ... Que pena! Não sei o nome dela, mas é esposa de Fêgo e a mãe de Hebe, e basta! Foi uma apoteose aquela festa, como gostei! Eu sempre gosto de festa onde haja ternura e amor. Eu queria que o mundo fosse melhor do que é, que houvesse mais justiça, mais amor, mais igualdade, que os ricos fossem menos poderosos e os pobres menos miseráveis. Já tomei muito seu tempo. Receba, portanto, Hebe, essa carta que é uma homenagem saudosa de um admirador dessa querida família taubateana e quando nos seus programas, lembra de Taubaté, refira-se a nossa terra e a nossa gente. Diga também Hebe, palavras aos internados do "Presídio Militar Romão Gomes" da Força Pública, fãs incondicionais de seus programas. À Fêgo Camargo e Senhora, a você e esposo e ao garoto, um abração taubateano.
                                                                              


TAUBATEANA COM MUITO ORGULHO



Garcílio da Costa Ferreira
 3º Sargento RE 5106-2



*******



   4. A TÃO AGUARDADA RESPOSTA DE HEBE CAMARGO


São Paulo, 21 de agosto de 1966
Meu caro senhor Garcílio.

Profundamente emocionada respondo a sua cartinha que me sensibilizou de verdade. Eu nem encontro palavras para dizer, depois de tantas coisas bonitas que o senhor me escreveu. Para que fique contente, digo-lhe que sou taubateana, com muito orgulho. Sou da terra do meu pai, de que o senhor tanto fala nesta carta. Ele por certo se lembrará do senhor, quando ler esta. O senhor me proporcionou um enorme prazer e muita alegria, lembrando essas coisas tão interessantes do tempo de sua infância e do meu pai. Ele vem todos os dias em minha casa e juntos vamos ler a sua carta.

Gostei imensamente de ter recebido uma cartinha tão carinhosa, de uma pessoa que foi companheiro de meu pai na juventude e que agora acompanha pela televisão os meus programas, com o mesmo carinho e admiração. Deus lhe pague e lhe dê muita saúde. Queira por favor, transmitir aos seus companheiros o meu abraço e os votos de felicidade. 

Cordialmente, 
Hebe Camargo.



PROFº GILBERTO DA COSTA FERREIRA - HISTORIADOR, PESQUISADOR E ESCRITOR. COORDENADOR TÉCNICO DO MEMORIAL GENERAL JÚLIO MARCONDES SALGADO.
cfgilberto@yahoo.com.br





 *******


    


Um comentário:

  1. Sgtº. Garcílio, o Sr. foi demais ! | 20/10/2013
    Desses acontecimentos, não tive conhecimento. Me encantei com os fatos. Lembro-me de que por vezes, tio Garcílio dizia que para ele não tinha barreiras, falaria com quem quer que fosse, autoridade ou não. Disse certa vez que só não falaria com DEUS, porque para isso, só se morresse ! E aí não daria certo.
    Nestor da Costa Ferreira.

    ResponderExcluir